A Arte de Deixar o Rio Correr
Durante muitos anos, acreditei, em silêncio, que o amor podia salvar tudo. Que bastava mostrar um caminho mais leve, oferecer ferramentas, dar a mão a quem amamos… e a mudança aconteceria. Mas a vida, com a sua sabedoria bruta e sagrada, mostrou-me algo mais profundo: o livre arbítrio é intocável.
E há uma linha invisível entre ajudar e impor, cuidar e controlar.
Ver alguém que amamos escolher a autodestruição (ainda que silenciosa) é uma das experiências mais desafiantes que já vivi. E, talvez por saber tanto, por ter ferramentas, por ter consciência… acreditei que era minha responsabilidade intervir.
Mas ser terapeuta, guia ou facilitadora de processos não nos poupa ao mais difícil: saber ocupar o nosso lugar: mesmo quando isso significa assistir sem interferir.
Hoje, partilho convosco uma experiência pessoal. Uma história real, da minha família, onde aprendi que amar também é soltar. Que apoiar também é confiar. Que, por vezes, o maior cuidado que podemos oferecer é honrar o caminho que o outro escolhe trilhar.
A minha avó ensinou-me isso.
Não com palavras. Mas com o silêncio do seu corpo.

Assisti, ao longo dos anos, ao seu suicídio invisível. Não àquele que assusta ou se grita. Mas aquele que se manifesta em forma de tristeza crónica, de resignação, de escolhas que nos vão esvaziando lentamente por dentro. Sabia que o seu corpo, mais cedo ou mais tarde, gritaria o que ela calou uma vida inteira.
E mesmo assim, tive que aprender a respeitar o seu tempo. O seu caminho. As suas escolhas.
A minha avó foi uma mulher que passou uma vida inteira a cuidar dos outros. Viveu dois casamentos: o primeiro marcado por maus-tratos visíveis, o segundo por uma violência silenciosa feita de chantagem emocional. Criou dois filhos que, como tantos de nós, cresceram com as suas próprias feridas, aprendendo a sobreviver, afastando-se emocionalmente.
E ela ficou. Cuidando. Silenciando. Resistindo.
Anos a fio, senti que o seu corpo ia somatizando tudo aquilo que ela não ousava dizer. A culpa. O medo. A solidão. A auto-anulação. Quando descobrimos o tumor, já era grande. Quatorze centímetros.
E com ele veio a necessidade de remover o rim esquerdo, a glândula suprarrenal e o baço.
Cada órgão removido contava uma parte dessa história. Mas também apontava, com sabedoria, os caminhos possíveis de cura emocional.
- O rim esquerdo expressa, no corpo, a dificuldade em sentir-se merecedora, a incapacidade de filtrar o que emocionalmente já não serve. Carga acumulada de culpa e ressentimento.
- A glândula suprarrenal somatiza o medo crónico, o estado de alerta constante, a exaustão de quem vive anos em modo sobrevivência.
- O baço, por sua vez, enfraquece quando a pessoa deixa de sentir prazer pela vida. Quando a leveza, a alegria e o brilho do desejo se apagam, o corpo sinaliza.
Quantas vezes sentiste impotência ao ver um ente querido repetir padrões que sabes que o estão a matar por dentro?
Estas doenças, antes de se tornarem físicas, foram emocionais. Emoções crónicas como medo, mágoa, preocupação e falta de amor-próprio vão, aos poucos, drenando a energia vital de cada órgão. Quando o corpo deixa de ter espaço para tanta contenção, ele grita. E grita através da dor, da doença, da falência de sistemas.
- Suprarrenais: pedem confiança e libertação do medo.
- Rim esquerdo: pede equilíbrio emocional e reconexão com o valor pessoal.
- Baço: pede alegria, prazer e leveza de espírito.
E se a tua dor física estiver a falar tudo o que não tens coragem de dizer?
Quando esses pedidos internos são ignorados por demasiado tempo, o corpo manifesta esse desequilíbrio com toda a força. Mas mesmo após perdas físicas irreversíveis: como a remoção de órgãos, a alma continua a oferecer oportunidades de renascimento.
De reconexão. De verdade.
Ao cultivar amor-próprio, ao libertar o medo e reencontrar alegria, a pessoa honra essas mensagens do corpo. Alinha-se com a visão holística de que toda doença é um mestre no caminho do autoconhecimento e da cura profunda.
Este texto também é para ti que cresceste numa família disfuncional, onde não havia espaço para vulnerabilidade. Que aprendeste que amar significava sacrificaste. Que ocupaste desde cedo o papel de “forte”, e por isso nunca te sentiste autorizad@ a cair. Talvez tenhas medo de desiludir os outros só porque começas a dizer “não”. Talvez sintas culpa por escolher o teu bem-estar em vez de continuares a salvar quem amas. Ou talvez estejas pres@ no papel de salvador, terapeuta, cuidador: mesmo quando o teu corpo já grita o que a tua boca nunca ousou nomear.
No momento em que ela mais precisou, eu estava a cuidar do meu avô. A vida colocou-me numa situação em que não pude estar presente como sempre estive. E foi precisamente essa indisponibilidade que permitiu que os seus filhos, o meu tio e a minha mãe, assumissem o lugar que sempre lhes pertenceu.

Durante anos, ocupei um papel que não era meu. Estive no lugar de filha, em vez de neta. Tomei responsabilidades que não me cabiam. E por mais que o fizesse com amor, isso impedia a hierarquia familiar de se reorganizar. Como ensina Bert Hellinger, quando a ordem do amor é violada, o fluxo de vida bloqueia.
Estás a ocupar o lugar de filha, mãe, parceira, terapeuta… tudo ao mesmo tempo? E onde estás tu nisso tudo?
Foi preciso deixar ir. Confiar. Libertar o controlo. E, acima de tudo, aceitar.
Hoje, vejo como o respeito pelo livre arbítrio é essencial para a harmonia familiar e pessoal. Mesmo quando o caminho do outro nos fere ou preocupa. Mesmo quando achamos que sabemos melhor. Porque não estamos cá para salvar ninguém. Estamos cá para amar.
E amar é aceitar.
Aceitar que cada um tem o seu ritmo. Que as escolhas dos outros não nos pertencem. Que o nosso lugar é sagrado, e não deve ser confundido com o papel do outro.
És a pessoa que toda a gente procura quando está mal… mas ninguém pergunta como estás tu?
Foi nesse espaço de entrega que assisti, emocionada, à cura silenciosa a acontecer: pela primeira vez em mais de 50 anos, a minha avó voltou a dormir com a filha. A minha mãe. O laço foi nutrido. A ordem restabelecida.
E eu? Eu permaneci na retaguarda, como neta. Sem culpa. Sem ruído. Com a paz de quem sabe que a vida se encarrega de tudo, quando a deixamos fluir.
Consegues imaginar como seria ocupar o teu verdadeiro lugar no sistema?
Partilho esta história não apenas como neta, mas como mulher, terapeuta e ser humano em constante aprendizagem. Partilho-a para que saibas que o que ensino, transmito e facilito não nasce apenas do conhecimento que estudei, mas do que vivi: no corpo, na alma e nas entranhas. Esta não é uma partilha intelectual. É visceral. É o resultado de sentir na pele a dor de ultrapassar papéis que não eram meus, de aprender a soltar, de respeitar o tempo do outro sem me anular.
Com este blog, não procuro dar respostas, mas abrir espaço para a reflexão sobre a lei da aceitação, do respeito e da humildade — princípios que, quando verdadeiramente integrados, têm o poder de nos devolver ao nosso lugar, à nossa paz e à nossa verdade.
Dá água a quem te pede água
Há uns anos, alguém me disse: “Dá água a quem te pede água.” Na altura achei que tinha compreendido. Mas só depois de muitas experiências, falhas e confrontos internos é que realmente integrei a profundidade desse conselho.
Um dos maiores desafios de saber tanto, de ter acesso a ferramentas transformadoras, é a armadilha subtil da arrogância espiritual: querer salvar o outro. Tive momentos em que vi claramente a sede de alguém e, em vez de esperar, forcei a minha ajuda. Acreditei que podia ser a solução. Mas, quão arrogante fui ao achar que sabia mais do que a alma daquela pessoa?
Quantas vezes damos ao outro aquilo que ainda nos falta a nós? O “síndrome do herói”, do salvador — muitas vezes mascarado de compaixão — é, na verdade, uma tentativa de preencher os nossos próprios vazios através da dor alheia.
O que acontece quando sabes demais… e te sentes responsável por tudo?
Quem sou eu para escolher pelo outro? Quem sou eu para impor um processo que o outro não quer viver?
Aceitar o livre arbítrio do outro é, talvez, um dos atos mais nobres de amor e humildade. Mesmo que o livre arbítrio do outro se manifeste na forma de autodestruição. Mesmo que doa.
Não é nossa responsabilidade corrigir o caminho de ninguém.
Respeitar é amar sem invadir. Apoiar é confiar que o outro encontrará, no seu tempo, a sua própria sede. E quando, e se, pedir água, aí sim, oferece. Com presença. Com entrega. Sem julgamento.

Perguntas para ti:
- Que papéis tens assumido que não são teus?
- Que relações estão a pedir-te para ocupares o teu verdadeiro lugar?
- Consegues aceitar que o caminho do outro é soberano, mesmo quando dói?
- Que sintomas ou desconfortos no teu corpo podem estar a sinalizar emoções não digeridas?
Cultivar inteligência emocional é reconhecer os nossos limites, honrar a nossa dor, mas também libertar o controlo sobre a vida dos outros. É assumir com coragem o nosso lugar e respeitar o lugar de cada um. É viver com amor, sem julgamento.
No fim, somos todos humanos. Todos a tentar. Todos a curar o que sabemos, da forma que conseguimos. E isso, por si só, já merece respeito.
Se este texto ressoou contigo, talvez estejas a atravessar um momento em que precisas de reencontrar o teu lugar na família, libertar o peso de salvar os outros ou compreender o que o teu corpo tem tentado dizer. O caminho da cura emocional, da inteligência relacional e do respeito pelo livre arbítrio começa dentro: e transforma tudo à tua volta.
Se sentes que é tempo de viver com mais leveza, autenticidade e equilíbrio, explora os meus acompanhamentos em neuzacoach.com. Porque o teu corpo, a tua história e a tua verdade merecem ser escutados com presença.
Se conheces alguém que precisa de ler estas palavras, partilha.
Talvez seja o início da libertação que essa pessoa tanto procura e nem sabe por onde começar.
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